APRESENTAÇÃO DA PERSONAGEM – Dra. Ângela
Médica dermatologista, 52 anos, casada. Angêla estava sozinha num final de semana. Seu marido, também médico, estava num congresso longe da cidade. Ela resolveu sair e caminhar pelo bairro.
Não havia planejado nada, mas ao passar por um prédio viu que havia uma placa indicando um apartamento para vender. Apesar de já passar das seis da tarde e já tendo anoitecido, ela resolveu perguntar ao porteiro se havia como ver o tal apartamento. Não tinha muitas esperanças de que consegueria. Ficou surpresa quando o porteiro ligou para o apartamento e a proprietária autorizou a sua visita.
Fora das normas do condomínio, que só permitia este tipo de visitas até às 16h, ela subiu. Antes, deixou seus dados na portaria. Número do RG, nome completo, profissão e endereço.
O apartamento era no primeiro andar de um prédio já antigo. Três dormitórios, dois banheiros, mais um quarto extra para dispensa, boa sala, cozinha espaçosa. Uma senhora a esperava com a porta aberta quando ela subiu. Devia ter uns 75 anos, cabelos grisalhos, ajeitados, elegante em seu tailler.
– Oi, querida, boa noite, pode entrar – disse a simpática senhora.
– Boa noite – respondeu Ângela, um tanto tímida e meio curvada.
– Parece até que eu estava mesmo aguardando alguém. Tenho um bolinho e um café. Aceita?
– Não, senhoraaaa…
– Ah, me desculpe, meu nome é Dirce. O seu é?
– O meu é Ângela.
– Então, Ângela, aceita um bolinho com café?
– Ah! Senhora Dirce, obrigada. Não quero incomodar, desculpe vir a esta hora.
– Não tem problema, querida, não tem problema. Vamos ver o apartamento?
– Claro!
– Temos aqui uma boa sala. Tenho muita coisa aqui, mas bem que eu podia me livrar de metade disto. A gente junta muita coisa nesta vida. Olha, é que agora não dá para ver, mas é bem iluminada. Face norte. A janela é grande… É para você mesma?
– Ah! É…
– A senhora é casada?
– Ah! Sou… sim – diz Ângela, mostrando a aliança e um pouco de desânimo.
– Olha a cozinha, que beleza de espaço. A área de serviço também é muito boa, dá pra por uma mesa de passar, tem bastante armário. É bem ventilado. Não é como os apartamento de hoje em dia, tão pequeninos. Este aqui parece mais uma casa.
– E por que a senhora está querendo sair daqui?
– Ah, minha filha, este espaço ficou muito grande para mim.
– Ah é, os filhos vão embora…
– Não, eu não tenho filhos.
– Não?
– Não. Éramos apenas eu e meu marido. Faz 12 anos que ele morreu e desde então… estou só.
– Não tem família aqui.
– Não, já casei tarde. Nem pensei em ter filhos. Acho que éramos meio egoístas, na verdade. Tínhamos um ao outro e nos bastávamos.
– Mas a senhora gostaria de ter tido filhos?
– Talvez. Mas não sei não se ter filhos significa ter companhia. Hoje, vemos tantos pais abandonados.
– É, a senhora tem razão.
– Sobre o quê?
– Ter filhos não afasta mesmo a solidão.
– Vamos ver os quartos. São 3, sendo uma suíte.
– Pensei que fosse um pouco menor.
– Não. São 3 bons dormitórios. Bem iluminados, bem ventilados. Muito agradáveis. Venha.
Saíram da cozinha e caminharam em direção ao corredor íntimo. Lá estavam, bem distribuídos os três dormitórios.
– Mas quantos metros quadrados tem este apartamento?
– São 130 de área útil.
– É um bom tamanho.
– A senhora tem filhos?
– Dois.
– E mesmo assim sente-se solitária?
– Sim – disse meio sem pensar – quer dizer, não…, às vezes… sabe, eles saem, têm a vida deles, os amigos, a escola…
– Nunca sobra tempo para os pais, não é mesmo?
– É.
– Olha este quarto aqui, que beleza. Aqui é a minha biblioteca, mas pode ser o quarto de um de seus filhos.
– Ah! Não, um já mora sozinho. E a mais nova vai passar uns tempos estudando no exterior… Estou vendo que a a senhora gosta mesmo muito de ler.
– Gostávamos, eu e meu marido. Ficávamos horas em silêncio, um ao lado do outro, lendo, lendo. Era isso que nos aproximava. Este conforto de estar junto sem precisarmos pronunciar uma só palavra.
– Nunca tinha pensado as coisas por este lado.
– Pois é, minha querida, a vida está nestes pequenos grandes detalhes. A gente aprende com o tempo. Este negócio de discutir a relação é coisa de gente desmiolada. Coisa da juventude. Relação não se discute, se vive.
– O problema é quando nem se discute, nem se vive…
– Aí é triste.
Ângela dá um sorriso amarelo, vira-se e vai em direção à sala.
– O jogo, como está? – referindo-se ao jogo da Copa do Mundo: Alemanha X Portugal, que passava na TV ligada na sala.
– O jogo? Ah, vai indo…
– Bom obrigada pela atenção, vou falar com o meu marido.
– Era o que você procurava?
– É muito bom. Mas estava pensando num um pouco menor.
– Não quer saber o preço?
– Ah, claro. Imagina, ia me esquecendo…
– Acontece. Olha, estava pedindo R$ 350 mil, mas se fecharmos negócio, posso abaixar um pouco, já que não teremos intermédio de corretor.
– 350 mil?
– Pense com carinho e volte para conversarmos… Não só sobre o apartamento. E da próxima vez você toma o meu cafezinho.
– É muita gentileza.
– Mora aqui perto?
– Sim, a dois quarteirões – e foi saindo, andando de costas.
– Volte.
– Obrigada – diz e tropeça no tapete da porta de entrada.
– Oh, desculpe, tome cuidado, filha.
– Não foi nada, está tudo bem.